sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Tragédias humanitárias e Escravidão


Com o nível de destruição que se abateu sobre o Haiti depois desse último terremoto, muito se falou em adoção de crianças haitianas por famílias de outros países. Porém, uma preocupação fundamental logo surgiu: a possibilidade de processos sumários de adoção serem na verdade fachada para o tráfico de crianças.

Esse assunto logo me lembrou uma discussão historiográfica importante para minha área de pesquisa: o problema do abastecimento de escravos na Roma antiga.

Tradicionalmente era visto como obviedade que os escravos romanos, principalmente durante o período de sua expansão imperial pelo mediterrâneo, eram cativos de guerra. A base dessa visão eram os relatos recorrentes nas fontes de escravizações em massa de populações conquistadas.

Dois autores foram importantes para desmistificar essa visão: Moses Finley e Keith Bradley. Ambos apontam um fato simples e fundamental que escapava desta percepção: uma população escrava qualquer precisa ser reproduzida – pouco importa que (segundo Tito Lívio) tenham sido escravizadas 150 mil pessoas na conquista do Épiro em 167 a.C., esses escravos morriam e precisavam ser repostos por fontes mais estáveis de abastecimento de escravos.

Não se pretende com isso negar a importância dessas grandes escravizações para a expansão do estabelecimento da escravidão na Itália romana, mas elas não podem ser vistas como as fontes cotidianas, regulares da reposição de escravos para os proprietários romanos. Finley e Bradley tinham em mente duas fontes regulares que eles acreditavam serem as fundamentais para essa reprodução da população escrava: o comércio e a reprodução interna (isto é, escravas tendo filhos que nascem escravos).

Obviamente, como bem diferencia Orlando Patterson, o comércio é uma forma de aquisição de escravos e não de escravização de pessoas – isto é, as pessoas vendidas como escravas precisam ter sido escravizadas de alguma maneira. Tanto Finley como Bradley tinham total consciência disso, afinal nenhum dos dois era bobo.

Pois bem, para Bradley isso cria um problema: o comércio era suscetível às mudanças na política militar, na relação com as províncias e toda mais uma sorte de fatores que afetam a escravização de pessoas nas províncias ou no além-limes (fora das fronteiras do império). Por isso, então, ele acredita que a única fonte realmente estável é a reprodução interna, apesar de ela não ser capaz de reproduzir a população escrava romana por inteiro – como ocorria, por exemplo, no sul dos Estados Unidos no séc. XIX.

Finley, porém, faz uma afirmação interessante nesse ponto e que é onde eu quero chegar. Para ele, é importante que exista um “reservatório” de escravos em potencial fora da sociedade escravista, de onde esta pode extrair novos escravos. E foi nisso que eu me peguei pensando ao ler essas notícias de escravização de crianças no Haiti.

As condições de reação frente a uma tragédia humanitária (de qualquer tipo) eram bem mais limitadas na antiguidade, certamente. Claro que os números absolutos de vítimas também eram menores, por questões demográficas mesmo, mas isso não me parece relevante. Quando qualquer tragédia dessas acontecia ali por perto do mediterrâneo antigo, piratas-comerciantes de escravos deveriam voar como abutres para cima desses flagelados. E talvez esteja aí um elemento importante para entender o tal “reservatório de escravos em potencial” de que Finley fala, que permite a regularidade do comércio de escravos na Roma antiga.

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