terça-feira, 24 de agosto de 2010

A importância do ensino de História

Eu não passei os últimos meses sem postar por que estava preparando um post sensacional sobre esse tema do título aí em cima. Eu passei os últimos meses sem postar por que a vida tá loka, mano. To trabalhando em dois colégios (um estadual, um particular) e fazendo mestrado - e só posso falar isso abertamente assim, sem medo de ser feliz, graça a isso aqui. Dou aula pra todas os anos possíveis - sexto ao nono do ensino fundamental, primeiro a terceiro do ensino médio e segundo e terceiro ano do EJA (faltam muitos anos do EJA nessa conta, eu sei, mas já é bastante coisa) - o que significa que eu tenho que preparar um milhão de aula a cada semana e isso toma um tempo absurdo. Desta forma, esse blog virou a última das minhas prioridades - na verdade, uma não prioridade dentro dos "projetos" que levo a frente esse ano.


Isso tudo pra dizer o seguinte: apesar de tratar neste post sobre algo que eu deveria saber bastante, este também vai ser um teste de hipótese chulé sem grandes aprofundamentos - com a única vantagem de partir não só de leitura e observação alheia, mas de minha própria experiência profissional.


Há uns meses atrás eu tava dando aula sobre Egito Antigo para minha turma de sexto ano (antiga quinta série). No power point que preparei, ilustrei a parte sobre religião egípcia com algumas imagens de templos e representações de divindades egípcias, entre as quais estava essa imagem do deus Hórus:

Deus Hórus
Enquanto eu falava da religiosidade egípcia, vi um dos alunos comentando com outro: "Esses deuses não existem não, eles são de mentira!". Ouvindo isso eu falei "olha bem, nós realmente não acreditamos nesses deuses, então para nós eles são de mentira, porém, se você conversasse com um egípcio desta época, ele diria que o deus que nossa sociedade acredita hoje em dia é que é mentira, e que os deuses deles eram verdadeiros".


A fala desse aluno tem dois aspectos interessantes. Primeiro, quando lidamos com crianças pequenas, como na quinta série, a distinção entre as noções de real e imaginário está em um estágio bastante inicial (alguém que prestou mais atenção nas aulas de psicologia da educação me corrija se eu estiver errado) e eles tem sérias dúvidas quanto a realidade de coisas que a sociedade de maneira geral lida como mitos. É claro que essa discussão é complexa, por que extrapola a educação infantil e adentra na psicologia humana de maneira geral, e nas diferentes formas que cada sociedade lida com a distinção mitológico/real, mas o ponto que destaco é mais simples e exemplifico com outro comentário de um aluno dessa turma de quinta série: ao conversarmos sobre mitologia grega, o aluno me perguntou se aqueles deuses e heróis existiram de verdade; eu expliquei que os gregos acreditavam que sim, mas que eram apenas mitos (relativistas culturais, me apedrejem!). O aluno, mesmo criado em uma sociedade cristã, que vê a mitologia grega como mera coletânea de fábulas, tinha dúvidas sérias quanto ao estatuto do real garantido a estes deuses e heróis.


O segundo aspecto é mais problemático ainda: tem a ver com a religiosidade infantil. Nessa idade, as crianças ainda estão num momento de aprendizado das crenças, e algumas famílias levam esse processo bastante a sério e de maneira muitas vezes bastante proselitista. Isso, obviamente, se reflete no discurso das crianças. Esse mesmo aluno que denunciou a falsidade dos deuses egípcios ficou estupefato comigo quando eu tentava explicar para os alunos que a associação entre Hades e o Diabo feito em nossa sociedade é equivocada e me perguntou em tom claramente assustado/indignado: "você tá dizendo que o Inferno não existe?" - ao que eu respondi ensaboadamente "estou dizendo que os gregos não tinham essa idéia de inferno que nós temos".


As duas intervenções do aluno são bastante coerentes e fundamentam-se claramente em um repúdio direto a religiosidades que não são cristãs. E isto é um problema pra mim: crianças aprendendo a repudiar uma religião que não é a deles tem maiores chances de se tornar intolerantes - e o ensino de História pode justamente combater essa intolerância.


O objetivo da minha resposta, apontando que os egípcios achariam que ele acredita numa mentira da mesma maneira que ele acha que os egípcios acreditavam em uma mentira, era bem simples: estimular a percepção entre os alunos de que existem diversas religiões na história e que elas não podem ser hierarquizadas. Estudar a religião egípcia pode parecer, para a crescente percepção utilitarista do ensino, descabido - afinal de contas, "para que eu vou usar esse conhecimento?" ou "quando na minha vida isso vai ser útil pra mim?". Pois aqui está humildimente a minha resposta: "pra aprender a não ser intolerante" e "a todo instante".


Essa história ainda traz uma outra discussão importante: a relação com os pais. Os pais desse menino certamente não ficarão nada felizes se seu filho lhes disser que o professor de História anda colocando em questionamento a religião cristã, e poderão vir reclamar com a direção ou, na melhor das hipóteses, vir falar comigo na próxima reunião de pais. Em um colégio particular com donos católicos, a chance de eu ficar em maus lençóis é grande, mas a saída me parece ser simples: tentar ensinar a esses pais o mesmo que to tentando ensinar ao filho deles, a importância de se respeitar a religião alheia - apesar de saber das parcas chances de sucesso desta empreitada.